Personagens: ELE - ELA
Didascalia:
Um homem e uma mulher sentados de frente para o público.
Permanecem imóveis.
Estas são as únicas rubricas da
autora em todo o texto.
O
resto está no silêncio do não dito no curso da dança de palavras. Escutem as
primeiras frases e verão que ali já se define tudo,
as cartas estão sobre a mesa e os jogadores, ELE e ELA, já
estão jogando. ELE, marcando o compasso, ditando as normas, ELA, aceitando a
marcação – a mão.
Eu danço tango. Corpo a
corpo, regra a regra e com uma voz que diz: “Segue a marcação, nena.”
Cada vez que entro no salão eu deixo a cabeça lá fora. E decido dançar.
Jogar o jogo embaralhado por ELE. Sei que uma vez ali, no abraço, o jogo não
pode ser interrompido. Uma vez começada a dança, ou o duelo “sexual” como
escreveu Zangaro, tem que continuar até ELE acabar, o tango, até o “mata-me” e
“morro”, até a união de paixão e morte, até o encontro trágico num
delírio de êxtase da dança que se torna bacanal.
Propondo
perguntas
Por que fico? Por que ELA fica? Por
que ficamos? Quais são as estratégias de “engate” que nos fazem saber que ali
está a porta e não podemos sair?
O chamado sexo
O categorizado
gênero
O recebido
O consumido
O não pensado
O aceito O que concebemos como “natural”
tem sua origem. Sua genealogia. Seu
momento de construção.
Quem construiu as regras do tango em
sua passagem de dança de homem com homem a dança de mulher com
homem?
Os papéis de gênero são armadilhas
que nos agarram à força.
Somos o que dançamos
Quando nascemos, ou diante da
primeira imagem de ultrasson, passamos da categoria “neném” a “é uma menina”, “é
um menino”. A denominação é um modo de fixar uma fronteira e também de
inculcar repetidamente uma norma – escreveu Judith
Butler.
Na dança do TANGO a tradição deve ser mantida. O sexo (que já traz
consigo a identidade de gênero) determina o papel que se vai representar e como,
no tango e além do tango. O masculino e o feminino estão construídos como
categorias com funções estabelecidas, qualquer desobediência gera punição.
Codificação de gestos e ações. Codificação de modos de vincular-se e de formas
de estabelecer relações. Desde o pequeno, desde o micro, “a dança de dois”, até
o macro.
Dançar o
TANGO é também uma forma de ser
latinoamericana. Uma maneira de estabelecer relações entre homens e mulheres não
só durante os instantes da dança, mas
além da pista de baile.
Somos o que dançamos sim, mas sobretudo somos o que está além do
que decidimos dançar. Somos o que está no espaço do abraço entre ELE e ELA, na
ressonância que permanece em nós na forma de sentimento/pensamento que nos
predispõe à escuta de: “deixe- se levar como um trapinho”. Somos o que fica
dessa ressonância e habita a zona de nossas tantas coisas não
ditas. Assim é para ELE como para ELA, estamos todas e todos na rede da aranha
social.
As regras são históricas mas não história desde sempre, não se
incluem na categoria “natureza”. ¿Será que
compreendendo/vendo/ mostrando o que está no silencio da dança, entre um
“enganche”, um “amague”, entre um “ocho y ocho”, entre um “gancho” e um “boleo”,
podemos continuar dançando sabendo o que dançamos quando dançamos, com a consciência de que somos transmutáveis, transformáveis, construções
efêmeras
que passam por um salão de dança chamado “vida” só durante o instante que dura o
tango – a marcação - que escolhemos seguir?
Gostaria que TANGO de Patricia Zangaro, aqui dançado por Tina,
Roberto, Gutto e por mim, possa lhes dizer enquanto dançamos, nós e
vocês: Tem um campo do discurso e do poder que
orquestra, delimita e
sustenta aquilo que se qualifica como “o humano.” (Judith
Butler)
Questionemos então a própria
“humanidade”.